Apenas uma nota

Já a algum tempo eu tenho sempre o mesmo desejo: tomar um café, somente eu, num café desconhecido, numa rua desconhecida, no meio da tarde. Tomar esse café assim, somente eu e ele, e assim ver a vida, sem que absolutamente nada me venha à mente.
Essa situação não é nova. Ela é exatamente a descrição da cena feita por Juliete Binoche em A liberdade é azul. No filme, ela executa a solidão do luto, ao mesmo tempo que se deixa reconstruir em meio às ruínas que ficaram de sua vida anterior. Ela tenta se libertar da vida que não pode ter mais, tentando também não ser engolida pela morte de sua família, pela morte de si mesma que se deu com a morte deles. Ela luta, porque tudo que há é morte. Apesar de ela estar, inexplicavelmente, inclementemente só e viva.
É sempre assim. Desde sempre tenho essa vontade de responsabilizar-me por mim. Sinto essa responsabilidade de saber que independente de qualquer coisa ou pessoa, eu existo e isso me coloca em posição de ter que me haver com as coisas. Nada que se aproxime de mim eu a sinto menos. Tudo se decorre, perto ou mesmo ao longe, mesmo do outro lado do mundo, tudo se resvala em minhas pernas, como os pequenos galhos e pontas das folhas das ribanceiras nos cascos de um barco.
Ontem, eu sonhei que algumas amigas iam me mostrar uma praia, que apesar de ficar lá no Oriente, custava pouco dinheiro para ser alcançada. Elas iam me ensinar o caminho. Era o meio da tarde, mas elas insistiam que com o fuso horário, haveria sol suficiente para ir e voltar.
Aí, agora eu me deitei e disse pra mim, num suspiro:
- Durma e me leve praquela praia.
E entendi: morrer deve ser dormir e acordar na praia dos nossos sonhos. Deve acontecer de a gente dormir e ir, finalmente, ver o mar. Finalmente estar lá. Finalmente, pisar na areia, no mar azul com o céu azul, naquele calor que é impossível de acontecer aqui, já que ele tem ao mesmo tempo aquela luz amarela e aquele leve torpor, como são as manhãs da infância que a gente tem na memória.
Eu sabia, também a algum tempo, que os anos iam sepultar muitos sonhos.
Mas eu jamais imaginei que eles afastariam tanto a vida daquele consolo de felicidade que aquece o coração. Eu jamais imaginaria que o calor matinal da infância seria sepultado em vida, a ponto de existir somente este esforço de manter-se em pé, atento, com sono leve. Eu jamais imaginei que a força de estar de pé, lúcido e responsável fosse capaz de transformar minhas mais doces memórias de aconchego em sonhos mais que distantes, em ilusões feitas de açúcar e ar. Eu jamais imaginei que estar de pé, lúcido e responsável fosse a vitória do medo.
Então, de tempos em tempos, nessa afã de querer tão profundamente o mar e a areia e o céu azul e morno mesmo acordada,  eu queria apenas poder tomar um café, um único café destituído do peso de estar em pé, lúcido e responsável.
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Fui procurar o link para o filme e, claro, encontrei:
O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. – Sigmund Freud

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