Etiqueta?
Quarta-feira à noite, vi um programa de entrevistas, acho que na TV Cultura, em que a entrevistada era Glória Kalil. Pausa antes de dizer a que vim: absolutamente linda, educadíssima, quem me déra chegar na idade dela com todo aquele "gramú". Mas enfim, o que ficou dando voltas em minha cabeça foi uma parte da conversa surgida no programa. O entrevistador pergunta, algo como:
- Você é bem nascida, vem de uma família conceituada, tem a etiqueta na sua vida como algo comum. Mas como as pessoas no geral podem adquirir essa etiqueta?
E ela (também escrevo aqui não as palavras exatas, mas sem fugir do que foi dito):
- Eu aprendi a etiqueta, ninguém nasce com etiqueta, eu fui tomando contato com a etiqueta.
Não pude de imediatamente deixar de pensar "Ok, mas a empregada doméstica que mora lá no Taquaril faz com a etiqueta tanto quando você (Glória Kalil) faria com um curso de solda com ferro quente".
Já nos é conhecido o fato de que, inclusive historicamente, a etiqueta, bem como a moda não só do vestuário e da beleza, terem suas origens nas classes abastadas, a nobreza, que abstêmica da produção do trabalho, ocupava-se da criação e gerência de suas extravagâncias visuais. Fato inclusive citado pela entrevistada, que aliás, demonstrou, óbvia e justificadamente, conhecimento da história da moda e do vestuário, acrescendo ainda o dado de que esse "ócio criativo" da nobreza era também e principalmente um identificador da posição social. E hoje a meu ver, o uso da etiqueta, ademais de todos os esforços das revistas femininas, dos programas da tarde e até do Fantástico, ainda se refere à estratificação social.
Conversando hoje sobre isso, me foi colocado que há também uma certa convergência do que comumente identificamos como etiqueta em direção aos conceitos de boa convivência, de bom senso. Não sei para você que porventura me lê. Mas para mim bom senso e etiqueta são duas coisas diferentes quiçá até em suas origens. Bom senso é saber que o garfo serve para comer melhor do que mão. Muito porque, uma mão limpa experimenta várias comidas e ainda não suja a roupa. Daí a inventar o sem número de garfos, copos, pratos, mão aqui e acolá, horário de rir e de chorar, meu amigo, vai uma distância. E o pior é depois de tanta regra, ainda julgar a minha "educação". O embrutecimento já deve ter me tomado, porque eu achava que educação era não jogar ovo nos transeuntes da sacada do prédio, nem bater em mulheres no ponto de ônibus porque elas "pareciam" prostitutas. Ok, não vamos nos enervar a tanto, mas eu achava que educação era dizer obrigado, não jogar comida fora, respeitar os mais velhos, pedir "desculpa" e "com licença".
Enfim, os meus pontos aqui são só dois. Um é que eu acho que com a pergunta em questão, feita pelo entrevistador, teria início um debate de verdade, daqueles da gente ir dormir exaurido mas satisfeito. Pena não ter sacudido mais um pouquinho a linha do anzol; O outro é que respondendo exatamente o que o entrevistador perguntou a dona Glória Kalil teria, no mínimo, feito duas grandes coisas: explicado a real utilidade da etiqueta e teria descido do saltinho da nobreza, oferecendo quem sabe um conceito que, se hoje é panfletado universalmente, tivesse a aplicação universal, o que representaria um esforço genuíno de agregação e não, novamente, de mais uma segregação. Ela teria não panfletado, mas dado o EXEMPLO APLICADO do que a etiqueta deve querer dizer. Ficou o vazio, o superficial, pairou no ar aquele aroma inútil que só confirmou minha suspeita sobre a dita etiqueta. Porque, convenhamos, evasão pode até parecer educação mas não é nada bonito.
Comentários
não só etiqueta e bom senso são coisas completamente distintas como a etiqueta em si é um diferenciador social
lembrei das origens bizarras da contagem de pontos do tênis, que começa no 15 e vai pro 30... anos depois eu fui descobrir que, por ser um esporte elitista, o primeiro ponto era 15 pq a grande maioria não-abastada só sabia contar até 10...
Agora essa do tênis passada pelo Kenji eu não sabia. Que sacanagem!